Por: Yuri Kiddo do Promenino com
Cidade Escola Aprendiz Futebol não é um dos esportes mais populares do mundo à toa. Muitas vezes, uma bola de meia já basta para levar aos sonhos milhares de crianças que imaginam um dia trocar as partidas na rua ou no campo do bairro por grandes estádios com a torcida cantando seu nome. Com esse pano de fundo, a ilusão bate à porta de meninos pobres, oferecendo possibilidades de triunfar em um grande clube. No entanto, os garotos podem nunca pisar num campo sequer e virar alvo de
trabalho infantil e ainda de redes de exploração sexual ou tráfico de pessoas.
Essa história não é de hoje, mas há o risco de que seja mais recorrente com a realização da Copa do Mundo no Brasil. “Não há dúvida alguma de que isso vai explodir. O país não se preparou de forma alguma em relação ao tráfico interno e estrangeiro de crianças. E a Fifa – que não liga nem para futebol, só para meganegócios – também não fez nada em relação à proteção da infância, de maneira geral”, aponta o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas, deputado federal Arnaldo Jordy (PPS/PA).
Para Jordy, o futebol é um esporte popular e que permite certa ascensão social, isso somado à fragilidade social vira o campo perfeito para o tráfico. “100% dos casos que apuramos são de famílias pobres e vulneráveis socioeconomicamente. É uma ideia sedutora e a criança é presa fácil. O olheiro é praticamente o bilhete premiado para a família, mas na verdade, muitas vezes, é o primeiro contato para a rede de tráfico”, explica o presidente da CPI.
Regras do jogo A esperança do filho ser a melhoria na condição de vida da família cria um conflito de valores entre a consciência e a necessidade, afirma o deputado. “Muitas vezes a família desconfia, mas prefere ignorar essa possibilidade porque aposta que vai dar certo. O garoto é visto como a conta bancária, então essa inversão de valores já caracteriza uma violação, que é o trabalho infantil”.
Para a procuradora do Ministério Público do Trabalho do Paraná Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, o sonho do futebol mexe com o emocional e os pais não pensam direito. Além disso, é comum o temor de estar perdendo a “oportunidade”, mesmo que em condições insalubres para a criança, como se isso fosse regra do jogo. “Os próprios pais acabam se iludindo e precisam ficar mais atentos. É necessário buscar informações sobre o olheiro, fazer pesquisa e acompanhar o filho ao centro de treinamento, no mínimo”, afirma a procuradora.
Muitos especialistas em futebol afirmam que não é apenas qualidade esportiva e o rendimento que importam no “novo modelo” de mercado de futebol e, sim, a possibilidade de ir para o mercado internacional. Em entrevista ao Promenino, o
jornalista Juan Pablo Meneses, autor do livro “Niños futbolistas” (Dente de Leite S.A., recém lançado no Brasil) traz à tona a “coisificação” do ser humano no futebol. “Ver a naturalidade com a qual pais, treinadores, representantes, managers, clubes e até torcedores veem a compra e venda de crianças foi o mais impressionante”, relata Meneses. “Quando um menino de nove anos é levado de um país a outro para trabalhar no algodão ou na fabricação de roupas, isso é visto como escravidão e tráfico de pessoas. O mesmo acontece dentro do futebol e a ninguém, nem à imprensa, parece questionável. Pelo contrário, muitas vezes é visto como orgulho.”
Meneses se diz surpreso porque ninguém dentro da indústria do futebol parece ter se dado conta do que está ocorrendo. “A FIFPro, o sindicato mundial de jogadores profissionais de futebol, fez um chamado à Fifa para tomar medidas sobre a venda de meninos a partir do meu livro. Os principais jornalistas da Espanha, Argentina e Chile me entrevistaram surpresos. Vemos o futebol todos os dias. Sempre há futebol na televisão. No entanto, tem muitas coisas do futebol que parece que muitos não notam ainda.”
Cartão vermelho Em 2012, no Paraná, o “Esporte Clube Piraquara” divulgava um suposto centro de treinamento na internet e atraía garotos estrangeiros. Quando os atletas chegavam, os passaportes eram recolhidos e o dinheiro mandado pelos pais não era repassado aos meninos. Sul-coreanos, os garotos não estudavam e sequer sabiam português ou inglês, o que os deixavam “destacados da realidade”, segundo a procuradora do Trabalho Cristiane. “A escravidão é correlata ao tráfico para o futebol. A criança é tirada da família e está suscetível a ser explorada de diversas formas, inclusive sexual. Concretamente, no caso de Piraquara, não houve interesse em instaurar qualquer inquérito criminal”. Mesmo sem indiciamento por tráfico, o grupo de aliciadores foi multado em R$ 40 mil e os jogadores mirins foram notificados para voltar para os países de origem.
A procuradora relata também situações em que crianças brasileiras vão para outro país e são deixadas à deriva, literalmente na rua e sem ninguém. “Ná há diferenças entre tráfico interno e internacional a não ser a distância de casa, a diferença de língua e de clima”, esclarece Cristiane. “As agências de modelo agem no mesmo contexto, com o mesmo roteiro e enredo, para captar meninas”, compara o presidente da CPI de Tráfico de Pessoas, Arnaldo Jordy.
Além da desigualdade social, a invisibilidade e a falta de leis específicas fazem do Brasil um país permissivo para o crime. “Estamos criando uma legislação especial de combate ao tráfico de pessoas, alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Pelé. Há também uma série de recomendações, inclusive para a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para que os clubes monitorem as contratações”, aponta Jordy.
Aprovado no último dia 20 de maio, por unanimidade, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n. 6.934/13 pede a alteração de vários pontos na legislação brasileira para dificultar e combater o tráfico de pessoas com mais rigor. O relatório final da CPI amplia a classificação dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, reconhecendo o tráfico para remoção de órgãos, trabalhos forçados e guarda de crianças e adolescentes como crime.